A senadora eleita disse que saberia de casos de estupro de recém-nascidos, de jovens que viviam sem dentes para praticar sexo oral e que comiam comida pastosa para ter o intestino livre e realizar sexo anal.
CANAL NBS A CPI realizada no Pará que investigou a exploração sexual de crianças e adolescentes no estado identificou, entre 2005 e 2009, cerca de 100 mil casos -e, segundo o relator da comissão, o ex-deputado federal Arnaldo Jordy (Cidadania), nenhum deles como os que a ex-ministra e senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF) relatou durante um culto no último sábado (8).
Jordy afirma que em nenhum momento foi registrado qualquer caso de crianças que teriam dentes removidos ou foram forçadas a determinados regimes alimentares com objetivos sexuais, como afirmou a ex-ministra.
"O problema da exploração sexual [na região] é antigo, e ela não conhece isso melhor que nós. O que ela alegou nós nunca ouvimos falar. Não precisamos da Damares espetacularizando uma situação que já é monstruosa. Agrava uma situação que, na prática, já é grave demais", diz ele à reportagem.
Além de ter participado da comissão na Assembleia Legislativa do Pará, Jordy também presidiu a CPI nacional sobre tráfico de pessoas na Câmara dos Deputados.
A freira Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, presidente do do Instituto de Direitos Humanos Dom José Luís Azcona, refuta a fala da ex-ministra sobre supostos fatos que aconteceriam na região de Marajó, uma das mais pobres do país.
Todos os 17 municípios do arquipélago figuram entre os piores do Brasil no ranking de Índice de Desenvolvimento Humano, inclusive com o valor mais baixo do país: a ilha de Melgaço.
"A fala da Damares não contribui para o combate à exploração infantil, é cruel e degradante para os defensores da vida. As crianças não precisam ser expostas como foram, as crianças precisam, sim, de qualidade de vida", diz ela à reportagem.
Henriqueta, que desde os anos 2000 atua na proteção da população jovem, ressalta ainda que o governo de Jair Bolsonaro (PL) se notabilizou pelo desmonte de políticas públicas, inclusive as voltadas à proteção das crianças e combate à exploração sexual.
A atual gestão, por exemplo, publicou um decreto que esvaziou o Conanda (Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente). A entidade também sofreu cortes justamente enquanto Damares estava à frente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, ao qual é subordinada.
"A solução, se ela [Damares] sabe que existe esse tipo de crime, não é levar para o espaço religioso, não é deixar as pessoas adoecidas, desesperadas. A solução para esse grave problema depende de um esforço de políticas públicas", afirma ela.
A freira participou tanto da CPI estadual quanto de uma simultânea realizada pelo Congresso. À época, ela fez parte da investigação como coordenadora da Comissão Justiça e Paz da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
Ela diz ainda que a região dos Marajó segue sendo terreno fértil para todo tipo de abuso contra crianças e adolescentes ainda hoje, em grande parte devido à falta de assistência do poder público.
"Esse crime deve ser desmistificado, não colocado em evidência para impactar a população do Brasil inteiro. Não é dessa forma, expondo cruelmente, como aconteceu, que vai ajudá-las a resolver a fome, a miséria e a falta de políticas públicas", afirma.
Desde que as declarações da ex-ministra foram feitas, uma série de órgãos públicos vêm questionando as alegações.
A senadora eleita disse que saberia de casos de estupro de recém-nascidos, de jovens que viviam sem dentes para praticar sexo oral e que comiam comida pastosa para ter o intestino livre e realizar sexo anal.
Damares afirmou ter vídeos de pelo menos parte desses casos, mas até o momento, não os apresentou. Também declarou que registros de estupros de menores seriam vendidos por até R$ 100 mil.
O Ministério Público do Pará, o MPF (Ministério Público Federal), e a Polícia Civil, além de diversas organizações da sociedade civil, vem desde então cobrando Damares e o Ministério da Família, Mulher e dos Direitos Humanos por explicações e provas sobre as alegações -até agora, não foram apresentadas.
O MPF divulgou nota nesta quinta (13) afirmando que atuou, de 2006 a 2015, em três inquéritos civis e um inquérito policial instaurados a partir de denúncias sobre supostos casos de tráfico internacional de crianças que teriam ocorrido desde 1992 no arquipélago do Marajó. Nenhuma das denúncias mencionou nada semelhante às torturas citadas pela ex-ministra Damares Alves no último dia 8.
"Em relação a denúncias recebidas pelo MPF que não tratavam de tráfico internacional de crianças ou de outro crime que deve ser julgado pela Justiça Federal, as denúncias foram encaminhadas ao Ministério Público do Estado do Pará", afirma o órgão federal.
Na quarta (12), a Promotoria do Pará divulgou nota informando que até agora também não recebeu denúncia formal ou prova do que a ex-ministra relatou eque segue aguardando informações do Ministério.
Jordy, que relatou a comissão estadual em 2010, diz que a investigação começou por denúncias de prostituição nas balsas que circulavam pelo arquipélago.
"Resumindo a ópera, atiramos no que vimos e acertamos no que não vimos. A situação era infinitamente de maior escala do que a gente imaginava. Uma tragédia", afirmou.
Segundo o relatório da CPI, foram identificados cerca de 100 mil casos de exploração sexual no estado em cinco anos. "Cerca de 20% do total [foi] praticado contra crianças de 0 a 5 anos de idade", diz o texto.
De acordo com o ex-deputado, três quartos dos registros envolviam algum familiar da vítima. Para ele, a investigação ajudou no combate a esse tipo de crime.
"O Tribunal de Justiça do estado do Pará havia emitido 17 condenações por estupro de menor de 14 anos, naqueles cinco anos [entre 2005 e 2009]. Em 2010, no ano da conclusão da CPI, o tribunal condenou 93. Só em 2010, o mesmo tribunal. Depois, de 2012 a 2017, reduziu a menos da metade no número total de casos", diz ele.
Nesta quinta, o ministro Ricardo Lewandowski rejeitou um pedido apresentado pelo grupo de advogados Prerrogativas ao Supremo Tribunal Federal para que Damares seja investigada.
Lewandowski entendeu que o caso não é, atualmente, de responsabilidade do Supremo e determinou o envio à Justiça Federal do Pará.
"Não há qualquer dúvida de que a ex-Ministra de Estado não é titular, atualmente, de nenhum mandato nem exerce qualquer outro cargo ou função mencionados no art. 102, I, da Constituição Federal", diz o ministro em sua decisão.
"Em outras palavras, a representada não se encontra no rol daqueles que detêm o chamado 'foro por prerrogativa de função' perante o STF, por não estar (mais) enquadrada em nenhum dos citados dispositivos", acrescentou.
Segundo o magistrado, não há também de se fixar a responsabilidade do Supremo pela análise do caso em razão de a fala de Damares ter sido explorada na campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL) à reeleição, segundo defendeu o Prerrogativas.
"Convém sublinhar que o simples fato de o discurso realizado pela ex-Ministra de Estado em templo religioso -acerca de gravíssimos crimes perpetrados contra menores no Estado do Pará- ter sido utilizado, ao menos em tese, na campanha do candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro, não constitui fundamento válido para fixar a competência desta Suprema Corte." POR FOLHAPRESS
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